A formação dos quilombos na região de Jacobina

Por João Batista Ferreira
Jacobina, localizada no Piemonte da Chapada Diamantina, é daquelas regiões onde o passado insiste em permanecer vivo. Desde o período colonial, suas terras serviram de passagem para exploradores, vaqueiros e religiosos que circulavam entre o litoral e o sertão, formando um verdadeiro corredor cultural e econômico. É também nesse cenário que se revela uma das faces mais profundas da história do Brasil: a formação de comunidades quilombolas, marcadas pela resistência, pela autonomia e pela reconstrução da vida longe da opressão escravocrata. Como lembra a literatura histórica, os quilombos não eram apenas refúgios, mas espaços de reinvenção social, onde valores de solidariedade e comunidade eram essenciais
Durante os séculos XVIII e XIX, a região de Jacobina recebeu fluxos constantes de africanos escravizados e seus descendentes, muitos deles envolvidos nas atividades de mineração e agricultura da região. Em meio às adversidades e às duras condições impostas pelo sistema escravocrata, grupos de homens e mulheres deram forma a comunidades que sobreviveram justamente porque criaram soluções próprias para existir com dignidade. Criaram roças, ergueram casas, organizaram-se politicamente e, acima de tudo, afirmaram a liberdade como princípio inegociável, tal como descrito por autores que analisam a formação dos quilombos como fenômeno de resistência ativa
A abolição da escravidão, em 1888, não encerrou a luta. Pelo contrário: inaugurou um novo capítulo. Sem políticas públicas que garantissem inclusão e cidadania, a população negra libertada se viu abandonada à própria sorte. Em Jacobina, como em outras partes do país, os quilombos foram a resposta possível — não apenas um abrigo físico, mas um reduto de reconstrução coletiva. A formação dessas comunidades expressa uma continuidade histórica: a do povo que se recusa a ser apagado, que mantém vivas tradições agrícolas, culturais e espirituais, transmitidas de geração em geração, sobretudo através da oralidade e do trabalho comunitário
Com o passar do século XX e o avanço das legislações voltadas à reparação histórica, os quilombos passaram a ser reconhecidos oficialmente como grupos étnico-raciais de trajetória própria, dotados de ancestralidade negra e vínculos territoriais específicos. Esse reconhecimento foi consolidade com o Decreto nº 4.887/2003, marco jurídico que regulamentou o processo de identificação e titulação das terras quilombolas no Brasil
Na região de Jacobina, esse avanço legal favoreceu a consolidação de várias comunidades tradicionais e abriu caminho para a certificação daquelas que há séculos viviam e trabalhavam na terra como herdeiras de resistências antigas.
Dentro desse processo, um caso merece destaque: o povoado de Coqueiros, que se tornou a primeira comunidade quilombola oficialmente reconhecida na região de Jacobina, justamente amparado pelo Decreto nº 4.887/2003. A certificação não foi apenas um ato burocrático; representou a validação de uma memória coletiva, a afirmação de uma identidade e o direito de existir segundo tradições que sobreviveram a séculos de violência e tentativas de apagamento. Para Coqueiros, assim como para outras comunidades quilombolas do Piemonte da Diamantina, o reconhecimento significou dignidade e força para reivindicar políticas públicas que garantem território, educação, saúde e preservação cultural.
A luta pela titulação definitiva das terras, frequentemente marcada por entraves burocráticos e disputas políticas, revela que a resistência não pertence apenas ao passado. Como afirmam estudiosos da questão quilombola, o reconhecimento jurídico é apenas o primeiro passo; a verdadeira transformação depende de políticas públicas contínuas e do compromisso em reparar injustiças históricas que ainda pesam sobre essas populações
Assim, contar a história da região de Jacobina sob a ótica das comunidades quilombolas é compreender que o Brasil real — o que se constrói nas margens, nos sertões, nos gestos de resistência diária — é feito mais de continuidade do que de rupturas. É entender que a liberdade, uma vez conquistada, precisa ser defendida todos os dias. E que lugares como Coqueiros, Santa do Cruz, Quilombo Erê Jacobina, e tantos outros, não são apenas pontos no mapa, mas capítulos vivos de um país que ainda busca se reconciliar com sua própria história.
Este artigo foi elaborado a partir das informações presentes no trabalho acadêmico Quilombos em Jacobina na Bahia: Práticas Sociais, Desafios e Reconhecimentos, de autoria de Tânia Marques Cerqueira e Vânia Damasceno Santos da Silva.
